O primeiro Big Mac no estômago de um país comunista: foi na Jugoslávia!
O Diário de Notícias recordou, ontem, o trigésimo aniversário da abertura do primeiro restaurante da cadeia McDonald’s na Europa de Leste, em 1988 na capital da então Jugoslávia, a cidade de Belgrado. A abertura na Jugoslávia não foi uma coincidência e deve-se ao maior grau de abertura às ideias ocidentais que havia no país em relação aos outros países de Leste.
Curioso é perceber que essa abertura foi usada como arma política entre sérvios e croatas no início do conflito no seio da ex-Jugoslávia e mais tarde como forma de protesto contra os EUA.
Leia abaixo:
“Foi há 30 anos que a McDonald’s chegou ao lado de lá da Cortina de Ferro. Belgrado, capital da então Jugoslávia, foi porta de entrada na Europa de Leste para a cadeia de restaurantes
A imprensa americana fez questão de dar a notícia como se de uma vitória política se tratasse. “O mundo comunista sofreu hoje o primeiro ataque Big Mac”, podia ler-se no Los Angeles Times. “Ronald McDonald [a mascote da marca] prepara-se para desferir na próxima quinta-feira o primeiro golpe nos corações e nos estômagos comunistas.” Foi há 30 anos, a 24 de março de 1988, que a cadeia de restaurantes McDonald’s abriu o primeiro estabelecimento para lá da Cortina de Ferro. Aconteceu em Belgrado, então capital da Jugoslávia.
Nikola Momcilovic tinha 12 anos e jogava ténis pelo Estrela Vermelha de Belgrado. Depois do treino habitual, encontrou-se com a mãe e a irmã, que tinha acabado a aula de ballet num estúdio das redondezas. Os três foram dar um passeio e, ao chegar à Praça Slavija, deram de caras com a longa fila de pessoas que se estendia rua fora. Era o tão aguardado dia de abertura do McDonald’s. A mãe perguntou aos filhos se queriam ir e eles disseram que sim. “Esperámos talvez cerca de 30 minutos. Lembro-me de que não sabia bem o que pedir e escolhi um cheeseburguer por causa de algumas falas dos filmes de Hollywood”, conta ao DN o atual diretor e produtor da Vice Servia, um site de informação e entretenimento.
É impossível saber, mas talvez Nikola e a família tenham sido atendidos por Vesna Savic, que tinha 22 anos e fazia parte da equipa de 120 pessoas que trabalhava no restaurante no momento da abertura. Trinta anos volvidos, continua fiel à empresa e ainda trabalha na McDonald’s, agora como supervisora do departamento financeiro. “Estou-lhes muito grata pela oportunidade que me deram. Na altura era mãe solteira e por causa disso ninguém me queria contratar”, recorda em conversa com o DN. “O dia da inauguração foi uma loucura. Servimos milhares e milhares de pessoas. Houve gente que veio de outros sítios na Jugoslávia”, acrescenta.
Até que ponto a abertura teve de facto um contexto político? Em que medida os hambúrgueres foram um golpe lançado ao estômago da Cortina de Ferro? Dragana Mitrovic, professora na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Belgrado, desvaloriza o significado geopolítico que o acontecimento realmente teve. “Tratou-se apenas de mais uma prova de que a Jugoslávia, em larga medida, era um país muito aberto, virado para Ocidente a nível cultural. Foi uma coisa nova, mas politicamente não se tratou de algo marcante”, explica.
As recordações de Momcilovic apontam no mesmo sentido. “Muita gente já tinha experimentado comer no McDonald’s. Durante os anos 70 e 80 a Jugoslávia tinha um passaporte bom, não precisávamos sequer de obter visto para visitar muitos países. As pessoas viajavam e tínhamos cassetes VHS com filmes americanos. A abertura do restaurante terá sido importante para a McDonald’s em termos de marketing, que teve possibilidade de dizer que tinha che- gado à Europa comunista, mas o significado político não foi relevante”, sublinha. Ele próprio já tinha estado num restaurante da cadeia dois anos antes, numa viagem a Paris.
Ainda assim, o novo McDonald’s de Belgrado – o segundo restaurante da cidade abriria no ano seguinte – acabou por desempenhar um papel importante no antagonismo entre as diferentes repúblicas que compunham o país. O marechal Tito morrera em 1980 e no final dessa década eram já nítidas as tensões nacionalistas que acabariam por resultar na guerra e no fim da Jugoslávia. Tal como explica Nikola Momcilovic, muitos consideram que o conflito entre a Croácia e a Sérvia – apesar de a guerra armada só ter começado em março de 1991 – se iniciou a 13 de maio de 1990, no Estádio Maksimir, em Zagreb, na Croácia. O jogo entre o Dínamo local e os visitantes do Estrela Vermelha de Belgrado foi marcado por confrontos violentos e por cânticos nacionalistas. Momcilovic recorda que os adeptos sérvios levaram para Zagreb um sinal publicitário de Belgrado que indicava “McDonald’s a 400 metros”. Plantaram-no à frente do estádio dos rivais croatas, substituindo metros por quilómetros.
Ficou também célebre o cântico que as claques do Estrela Vermelha passaram a entoar durante os jogos contra rivais croatas: “Nós temos um McDonald’s, McDonald’s, McDonald’s, onde é que está o vosso?” Ou ainda um outro, que rima em servo-croata, dirigido especificamente aos adeptos do Hadjuk Split: “Hambúrguer, cheeseburguer, ketchup e batatas fritas, nós temos um McDonald’s e Split não.” A cadeia americana só abriria o primeiro restaurante na Croácia já em 1996, depois da guerra. Sarajevo, capital da Bósnia Herzegovina, teria de esperar até 2011.
Quase uma década após a inauguração, o McDonald’s da Praça Slavija acabaria por transformar-se num alvo político. Alguns manifestantes violentos atacaram as instalações do restaurante para retaliar contra os bombardeamentos da NATO sobre Belgrado, em 1999. Algo semelhante voltou a acontecer em 2008, na sequência da declaração de independência do Kosovo, apoiada pelos EUA.
Para muitos, as bombas largadas sobre Belgrado pela Aliança Atlântica vieram pôr termo à teoria do jornalista do The New York Times Thomas Friedman – por três vezes vencedor do Prémio Pulitzer -, nascida no pós-Guerra Fria e segundo a qual jamais haveria uma guerra entre dois países com restaurantes McDonald’s. “Nesta semana, a Rússia, um país com 433 McDonald’s, intensificou o seu ataque à Ucrânia, um país com 77 McDonald’s. Penso que finalmente podemos declarar nula a teoria da McPaz”, escreveu em 2014, nas páginas do The Washington Post, Anne Applebaum, autora do livro Gulag – Uma História, que lhe valeu o Pulitzer em 2004.”
In: https://www.dn.pt/mundo/interior/o-primeiro-big-mac-no-estomago-de-um-pais-comunista-9258112.html
Foto: https://www.dn.pt/mundo/interior/o-primeiro-big-mac-no-estomago-de-um-pais-comunista-9258112.html