Grande entrevista a Emir Kusturica – realizador de “Underground” e “Gato Preto Gato Branco”

Emir Kusturica: «Decidi fazer cinema porque faria qualquer coisa para evitar ser um criminoso»

Muitas vezes diz-se que o trabalho de um artista é o reflexo da sua vida. No caso de Emir Kusturica (Sarajevo, 1954), a sua vida é o seu melhor filme. Enquanto profissional, admite que é um mau colega de trabalho, que não respeita horários, datas ou orçamentos. Mas explica que isso se deve à importância que dá à sua liberdade pessoal. Além disso, quando filma, fá-lo de uma maneira grandiosa. Sem pensar nos gastos. É assim que os ciganos, com quem cresceu, tradicionalmente vivem, sem saber o que farão no dia seguinte, e sem se importarem com isso. Estas razões fizeram com que conseguisse que o seu nome estivesse inequivocamente associado a uma maneira de fazer filmes: o estilo Kusturica.

Porque se dedicou ao cinema?

Para não ser um criminoso. Eu teria feito qualquer coisa para não cair no ambiente de crime que me rodeava. Todas as pessoas com quem cresci em Sarajevo tornaram-se criminosos. Também vivi fora da lei algumas vezes, mas sabia quando tinha que parar. Eu sabia qual o limite dessa linha e que se a cruzasse, tudo iria pelos ares. Então, pus na minha cabeça que seria um artista. Além disso, sempre fui muito teimoso com as minhas ideias, mesmo quando não tinha razão, ia até ao fim, mantendo a minha posição a todo o custo. Ninguém pensava que eu poderia tornar-me um artista, e isso era razão suficiente para eu tentar. O bairro em que eu cresci, as pessoas com quem me relacionava… Nada parecia indicar que um diretor de cinema sairia dali, alguém que se dedicasse ao mundo da arte, mas assim foi.

Gosto que a vida nos guarde este tipo de surpresas, de fatores inesperados, contradições. Porque agora vejo que a vida é muito planeada. Quando um jovem cineasta filma o seu primeiro filme e está pronto para ir a Cannes, está pronto para receber prémios. Os jovens estão a seguir um plano definido. Fazem uma pequena coisa e querem o reconhecimento em todo o lado e ir a todos os festivais. A minha vida, em comparação, foi completamente inesperada. E tenho que confessar que lamento o que se passa agora. Acho que já não se valoriza toda a riqueza desta profissão, a complexidade. As novas gerações consideram apenas as formalidades, o superficial, o que está do lado de fora, em suma, ganhar prémios.

Como era o bairro onde cresceu?

Naquela altura, Gorica, em Sarajevo, era um lugar muito humilde, um bairro operário onde convivíamos com os ciganos. Tenho a certeza que qualquer experiência lá era mais intensa do que em qualquer outro lugar. Com o passar dos anos, reconheço que todo o meu trabalho cinematográfico é uma reação a esse passado. Mas só quando comecei a estudar é que percebi o valor que a minha origem tinha. Para terem uma ideia da reputação do bairro, na primeira vez que recebi um prémio, um dos meus melhores amigos estava a trabalhar num navio em alto mar. Com algumas interferências, ouviu na rádio que algo tinha acontecido a Emir Kusturica, mas não sabia o que se tinha passado. Ele pensou que eu tinha roubado um banco, um assalto aterrorizante, algo muito violento, mas nunca lhe passou pela cabeça que seria uma boa notícia. Ele ficou muito preocupado, mas o que realmente aconteceu foi que eu tinha acabado de ganhar um prémio em Veneza pelo meu primeiro filme Lembras-te de Dolly Bell? Vou voltar ao passado. Naquela altura, a vida não podia ser domesticada ou planeada. Antes, era mais fácil para qualquer um alcançar qualquer coisa. A sociedade era diferente da atual.

Mas um rapaz humilde, como o Emir, entrou na Escola de Cinema de Praga.

Entrei em Praga porque os meus pais investiram a sua herança e as suas poupanças nos meus estudos. O meu pai era conselheiro do ministro da Informação. Isto agora soa muito bombástico, e naquela altura ainda mais, mas na época não se traduzia em dinheiro. Quase o oposto. Nós não éramos ricos.

Para me aceitarem na escola, eu tive que mentir [risos]. Eu disse que queria estudar cinema em Praga, porque na nossa sociedade havia pouco realismo socialista! Precisávamos de mais! Então, o meu filme teve como base a ironia sobre o realismo socialista em si… [risos]. Quando anunciei isto, ficaram muito sérios e aceitaram-me, mas também não foi o suficiente. Não estudei na Checoslováquia com uma bolsa de estudos.

Por quê?

Na minha família, não éramos bons comunistas. Na Jugoslávia, havia um campo de concentração chamado Goli Otok. Ali não havia apenas anticomunistas, mas também todos os comunistas acusados ​​de apoiar Estaline, após a rutura deste com Tito, ou daqueles que simpatizavam com a União Soviética. Muitos dos amigos do meu pai estavam lá presos. É curioso que as atrocidades cometidas em Goli Otok não sejam conhecidas no mundo ocidental. Nunca foram denunciadas. Para o Ocidente, nunca foi uma causa. Por quê? Porque não lhe servia de nada, não tinha valor estratégico denunciá-las. Mas por causa do que aconteceu lá, o meu pai foi crítico do sistema e naquela época a imagem de Tito era como um sinal de trânsito, estava presente em todos os lugares e em grande número. Essa postura foi um problema.

Não tendo qualquer ilusão, entendi, no fundo, o lado de Tito. Ao longo dos anos, especialmente vendo os políticos de hoje, é muito difícil que no nosso território, que é como um barranco, se acredite que algo se sustenta. Acho que o seu momento foi realmente complexo e que se deve reconhecer que o seu trabalho foi valioso. Hoje mudei de opinião, mas enquanto jovem, tinha outra.

Mas o meu pai representou isso, ele tinha as suas diferenças e já se sabe como funciona este país. Quando duas pessoas estão em guerra, não há qualquer hipótese de que aqueles ao seu redor fiquem à margem. O veneno espalha-se e atinge todos. E eu não era exceção. Fui barrado. Não me deram a bolsa de estudos. Já se sabe como as pessoas daqui pensam: por que vais fazer algo normal se podes complicar?! Então, os meus pais venderam uma casa que tinham herdado e investiram nos meus estudos.

Sinceramente, agora estou feliz que tenha sido assim. O que guardo disto tudo foi esse gesto de amor e carinho dos meus pais. Eles sacrificaram-se por mim. Também reconheço que não eram uma exceção. É uma característica muito comum entre o nosso povo nos Balcãs, o dar tudo pelos seus filhos. Duvido que exista outro lugar no mundo onde isto seja assim. Pelo menos, eu nunca vi. Os meus pais poderiam ter tido uma segunda casa, a típica casa de verão, e prescindiram dela por mim. Pelo menos na Europa, acho que estas coisas não acontecem com frequência.

Porque é que a escola de Praga era tão importante?

O que ensinavam não era o mais importante. O valor estava em estar lá. Era um espectro muito mais amplo, porque se podia conhecer muitas pessoas, não apenas marrar. No meu caso, frequentava os teatros da cidade. Tornei-me amigo de todos os atores, diretores, dramaturgos… Experienciei, em primeira mão, como trabalhavam.

Até então, em Sarajevo, só via filmes americanos, muitos de Charles Chaplin. Também é verdade que vi muito cinema francês, mesmo agora tenho a sensação de que todas as vezes que eu faço um filme, estou a fazer uma réplica do trabalho de Jean Vigo. Logo, também fui muito influenciado pela cinematografia soviética, mas se eu tivesse que dizer porque Praga foi transcendental para mim, é porque lá aprendi a medir a distância irónica, isto é, abordar um drama sem stress.

Digamos que os checoslovacos pintavam dramas e os moldavam com humor. Não foi apenas no cinema, também têm uma tradição literária nesse estilo que mistura géneros tão diferentes. Muito tempo depois, quando eu estava nos Estados Unidos, vi uma foto de uma mulher num carro que acabara de sofrer um acidente de trânsito e estava a rir-se! Isso era Praga. Nos momentos mais stressantes, mesmo quando o corpo está em perigo, pode usar-se o sorriso como uma defesa. Isto marcou o meu estilo e define o género de ficção desta região da Europa. Peter Watkins disse que foi como um guião de Shakespeare interpretado pelos Irmãos Marx.

A sua primeira curta-metragem foi Guernica, uma metáfora em torno do quadro de Picasso.

Também não foi fácil. Para obter o financiamento, tive que recorrer ao contrabando [risos].

De quê?

A Checoslováquia estava, naquela altura, sob o domínio soviético. Depois da Primavera de Praga, quando colocaram os tanques [na rua], nós, os jovens do leste europeu não tivemos outra hipótese senão aceitar tudo como factos consumados, mas nesta cidade ainda havia redutos alternativos herdeiros dessas mobilizações, da revolução democrática, que queriam algo mais. Então, como eu tinha um passaporte jugoslavo, que nos anos 70 era o passaporte que mais países do mundo permitia visitar, podia sair dali e comprar discos. Ia a Berlim, conseguia discos de jazz e rock e vendia-os. Para os jovens checoslovacos, esse material era uma expressão de liberdade. Mas eu não fui mais longe. Poderia ter continuado a vender tabaco e outras coisas, mas parei.

Tal como a maioria das crianças jugoslavas, os meus pais ensinaram-me o valor da honestidade. Sabia perfeitamente as barreiras que não podiam ser ultrapassadas. Não foi apenas por causa do medo de me tornar um criminoso e as consequências que isso teria, teve mais a ver com o amor da minha família. Os valores morais da família jugoslava era um fator que tinha muito presente. Ensinaram-nos a ser honestos com os outros e a esperar honestidade deles, mesmo que não a tivessem. Tudo isto pode ser visto nos personagens dos meus filmes. Mesmo que sejam os piores, eu sempre os representei com um pequeno detalhe de bondade. Não eram totalmente maus.

O facto é que não considerei o meu tráfico de discos como crime, mas como um exercício de missão cultural. Eu era missionário [risos]. Quão ridículo isto parece hoje, certo? Conseguem imaginar alguém a cruzar a fronteira com uma Pen USB cheia de discos? Os jovens do meu tempo, antes de fazerem algum mal, como ficar drogado ou bêbado, hesitavam, mas hoje toda a gente faz isso. Pelo menos noventa por cento. Nem ficariam surpreendidos com a minha imagem de cruzar a fronteira com alguns discos escondidos [risos].

Com os benefícios que recebi graças ao contrabando, pude reunir dinheiro para o meu filme, mas também tive o privilégio de visitar a minha namorada, que é agora a minha mulher. Demorava vinte e cinco horas de comboio até Sarajevo para vê-la. Era um comboio/trem búlgaro horrível! Numa viagem, apanhei sarna e a minha mãe teve que curar-me com pomadas.

Mas o importante é que consegui dinheiro para Guernica, o meu trabalho de fim de curso. Gravei-o num estúdio e num castelo de Praga. A inspiração não veio diretamente do quadro de Picasso, mas sim de uma história do escritor sérvio Antonije Isakovic. Um escritor mestre em contos. Desenvolvi a história que me impressionou, onde uma criança fica sozinha em casa, enquanto os seus pais são identificados racialmente pelos nazistas numa investigação antropológica para mostrar que os judeus eram fisiologicamente diferentes dos arianos. Antes de partir, os pais explicam à criança que são diferentes pelo tipo de nariz que têm, o que surpreende a criança e, quando fica sozinha, tira todas as fotos da família e corta o nariz de todos. Então, com todos os narizes recortados, inspirada pelo quadro de Picasso, que viu com o seu pai, faz uma composição semelhante. Com isto fechei o círculo e acho que nunca mudei de estilo. O cinema é um trabalho coletivo, mas a missão do diretor é que o resultado tenha um significado. O importante é que qualquer pessoa que vá ao cinema, mesmo que não tenha ideia do que é esta profissão, possa sair da sala a pensar que o filme foi um todo. Enquanto eu estava a filmar Guernica, percebi que era assim que deveria ser. Foi a primeira vez que o senti e assim continuo.

Como foi estudar cinema num país onde os soviéticos acabavam de impor uma forte censura?

Estive quatro anos a estudar lá. Mas ao longo do tempo, percebi uma coisa: naquela Checoslováquia, a censura foi imposta, mas não sei se hoje, no capitalismo, não há mais limitações ao pensamento e à liberdade de expressão. Por outras palavras, pode haver mais censura hoje. George Lucas até disse recentemente que durante a Guerra Fria havia mais liberdades artísticas do que agora. Acho que deveríamos refletir muito seriamente sobre a liberdade que temos hoje.

O nível de liberdade não pode ser medido pela gorjeta que se oferece ao empregado de mesa, como está a acontecer agora. A liberdade neste modelo social é como um empréstimo a curto prazo, não acho que tenha algo a ver com o alto conceito de liberdade que os filósofos falaram há séculos. Vivemos num mundo completamente diferente daquele onde cresci. Hoje podem vigiar-nos em qualquer lugar, tudo o que fazemos. E as pessoas ligam-se às redes sociais com toda a alegria e boa vontade em fornecer todas as informações sobre a sua vida e os seus movimentos. A humanidade está perdida!

A verdadeira liberdade é um privilégio, apenas, para alguns. Aqueles que questionaram os fundamentos desta sociedade, aqueles que lutaram para que não fôssemos um rebanho, uma massa facilmente manipulada, indivíduos corajosos, como Snowden ou Assange, pagaram caro.

O seu primeiro filme Lembras-te de Dolly Bell?, não foi censurado na Jugoslávia comunista, mas rotularam-no como “Não recomendado”.

A censura existia, mas mais dentro das pessoas. Aquilo que hoje se chama de correção política. Antes era-se politicamente correto, mas com a receita bolchevique. E hoje em dia é-se politicamente correto no sentido consumista. Não se fazem muitas perguntas, consome-se e tem-se filhos quando é necessário.

Naquela época, não havia muitos diretores dispostos a fazer filmes comprometidos. No início dos anos 80, as autoridades ainda protegiam, cegamente, a figura de Tito e o lema sagrado da Jugoslávia de “fraternidade e unidade”. Agora parece muito engraçado, mas naquela época nenhuma dessas duas coisas eram para brincar. O nome de Tito nunca foi questionado, em circunstância alguma e ponto final.

O meu filme não falava mal dele, não denegria os comunistas, apenas os ridicularizava um pouco. Nos anos 60, na Jugoslávia, havia uma geração de cineastas que questionavam o sistema comunista, eram os cineastas da famosa “onda negra”, e todos acabaram mal. Mas eu não fiz nada disso. Eu não odiava os comunistas. Eu só queria retratar aquela geração em que um homem se podia esquecer que tinha uma infiltração no teto da sua sala de estar, que era a sua mulher que tinha que se baixar para colocar baldes de água, porque ele estava preocupado com questões muito mais importantes, os problemas do socialismo no mundo.

Essas pessoas eram assim mesmo. Pensavam que o comunismo chegaria até ao ano 2000. Eram idealistas. Tinham em mente os grandes problemas da humanidade. Perguntavam coisas como: devemos secar o Oceano Índico para plantar e acabar com a fome no mundo? Estavam dominados pelo idealismo. E vejam agora como o mundo mudou. Se agora quiserem ofender ou refutar os argumentos de alguém, é-se acusado de ser idealista. Antes era um orgulho sê-lo.

Acho que o bom deste filme é que serviu para retratar como a situação ainda estava no final dos anos 70 e início dos anos 80, as ideias das pessoas daquele tempo. A origem do filme está nas recordações do meu amigo Abdulah Sidran, que escreveu os meus primeiros guiões. Descrevia todo este ambiente misturado com as experiências da sua família, de uma forma muito poética.

O filme ganhou reconhecimento internacional, foi premiado no Festival de Veneza.

Sim, e eu festejei embebedando-me em todos os bares, sem me importar com Tito e o Estado. Não o fiz por nada de especial, só para provocar. Já disse que sempre soube onde ficava a fronteira onde se pode arruinar a vida, porque aqui estava eu ​​mais uma vez a brincar com o limite. Aproximei-me e afastei-me muitas vezes na minha vida. Aquelas provocações foram mais uma brincadeira do que algo com significado político. Deram-me o prémio, fiquei cego pelo sucesso, tornei-me alguém e o que saiu foi um disparate. Em vez de ir para as Bahamas descansar, eu queria ir para os kafanas [restaurantes] rir-me de Tito.

Lembro-me que, numa dessas vezes, a minha mulher ligou para o meu pai ir à minha procura pelos bares e o meu pai aproveitou-se disso para ficar bêbado. Resumindo, chegámos a casa, bêbados, e o meu pai abriu uma porta que tínhamos tirado da casa de banho para pintá-la e caiu-lhe em cima [risos]. Para terem uma ideia do que quero dizer sobre como era essa geração. No chão, bêbado, com a porta da casa de banho em cima, o meu pai continuava a filosofar: “E o que é que os checoslovacos vão fazer com toda a produção de ferro se a URSS afundar?” [risos]. O homem com toda a boa intenção de ser racional e inteligente, no final, o que ele tinha era aquele lado surreal.

Todos viviam no mesmo andar?

Com o prémio debaixo do braço, pedi ao Estado um apartamento para me tornar independente e morar com a minha mulher, mas não mo deram porque eu não pertencia ao partido. Era impossível, a militância é algo que eu nunca considerei porque, por causa da minha natureza selvagem, se eu não tinha conseguido sobreviver nos escoteiros, muito menos conseguiria no Partido Comunista.

Eu respeito muito a minha liberdade. Nem militâncias; nem partidos, nem maçons, nem sociedades secretas. Nada. Eu tenho um conceito muito elevado da minha liberdade. Não consigo apoiar qualquer tipo de organização. Por este motivo, sofri muito com o Partido Comunista, porque não havia como evitá-lo, infiltrava-se em todas as facetas da vida. Mesmo quando fui para a tropa, tive um comandante que me fazia prometer todos os fins de semana, que quando eu fosse para casa, me iria filiar ao partido. Por fim, meti-me no cinema e finalmente pude usar como derradeira desculpa que estava ocupado demais para me dedicar à política. Pouco tempo depois, Tito morreu e ninguém teve que fingir nada.

O problema é que estávamos numa terra de passagem, cercada de grandes impérios. É por isso que nos provocaram tanto, sofremos muito e somos tradicionalmente um lugar de conflito. A Jugoslávia, enquanto união de povos, fazia muito sentido, era um país importante, mas quando o capitalismo corporativo se espalhou, teve que ser demolido. Conseguiram que todos pensassem que destruir a Jugoslávia era um mérito exclusivo de Slobodan Milosevic, mas todos nós sabemos que foram alguns países europeus e os Estados Unidos que destruíram a federação por diversas razões. Há dados de quanto dinheiro investiram para destruí-la. Mas a globalização nos anos 90 destruía tudo por onde passava e a sua fórmula era dividir o máximo possível para poder dominar o planeta. É muito mais fácil controlar uma zona se estiver dividida. Um país de vinte e cinco milhões de pessoas não poderia ter dominado tão facilmente.

Quando o seu filme seguinte, Papá está numa viagem de negócios, foi premiado em Cannes, o Emir não quis receber o prémio. Disse que estava em Sarajevo a mudar o parquet de casa.

Foi uma piada, não era para ser levado a sério. Há algum tempo, estava eu a comemorar o aniversário do canal de televisão Russia Today e sentei-me ao lado de Putin. Quando voltei, os jornalistas perguntaram-me o que eu conversei com o presidente russo. Para não ter que explicar-lhes nada, eu disse que tinha-lhe oferecido o pátio da minha casa para que ele pudesse instalar um foguete ali. Um disparate, certo? Mas não. As pessoas esqueceram-se do que é uma piada, tal como aconteceu com o parquet, que ainda continua.

Naquela época, com Cannes, como alguém poderia ousar brincar sobre o sagrado tapete vermelho! E, com Putin, voltaram a levar a sério. Disseram que eu sou irresponsável, um deputado disse que até àquele dia tinha consideração por mim, mas que eu tinha passado todos os limites. Até Aleksandra Joksimovic, que era chefe de gabinete do Ministério de Relações com a União Europeia, emitiu um comunicado, alertando que uma pessoa singular que não seja uma empresa, não tinha o direito de vender o seu espaço privado para colocar a instalação de um foguete.

Acho que as pessoas deveriam ter um pouco de sentido humor, não? [risos] Não a qualquer preço, mas…

De qualquer forma, Sarajevo dos anos 80 tem a reputação de ter sido uma cidade muito divertida.

Mesmo na Rússia do Czar, havia círculos anarquistas que promoviam diferentes tipos de niilismo. Ainda hoje continuam a existir. Os jugoslavos também tinham essa energia destrutiva, ou autodestrutiva, de destruir sem sentido. Em Sarajevo, naquela altura, houve esses impulsos e tinham como particularidade expressarem-se através do humor. Na Grã-Bretanha, por exemplo, por um lado, estavam os Clash e Joe Strummer, que tinham a sua própria visão do mundo, e depois na televisão, os Monty Python, que recorriam ao humor para denunciar a hipocrisia da sociedade. Em Sarajevo, tudo isso estava simultaneamente no movimento do “novo primitivismo”.

Enquanto em Londres, todo o movimento punk ia desaparecendo, em Sarajevo aparecia. Mas agora, visto à distância, reconheço que fazia parte de uma percentagem muito pequena de pessoas. Toda essa onda punk ajudou-me a fazer do meu cinema o primeiro em toda a Jugoslávia, no qual a linguagem que era falada na rua era usada. Mas éramos apenas uma minoria que tinha esse espírito e ouvíamos essa música. Reuníamo-nos num apartamento para pôr a tocar um álbum de Lou Reed e era um motivo de orgulho. Achávamos que era uma revolução, mas agora percebo que éramos apenas quatro gatos pingados. Como é possível que agora tantas pessoas daqui oiçam turbofolk [estilo de música popular famoso nos países da antiga Jugoslávia]? Até que ponto de vulgaridade chegámos na Sérvia, Croácia e Bósnia? Não é pop, nem é música popular… representa apenas tudo contra o qual estávamos a lutar nos anos 80.

Trouxe Johnny Depp de visita pouco antes do início da guerra na Bósnia.

Foi uma visita muito interessante, porque foi a última vez que estive em Sarajevo. Foi em 1992. Tentámos montar um festival de cinema na Bósnia, fomos visitar o ministro e ele achou que Johnny era um cigano e deixou-nos passar. Mas Johnny não se importava onde estava, não se importou com os detalhes. Ele veio por mim, que era o seu amigo, mais com o interesse de ver onde eu tinha passado a minha infância do que saber como era a capital da Bósnia e Herzegovina.

Tentei fazer com que ele visse zonas da cidade que eram interessantes por causa da vida nas suas ruas, pessoas interessantes, mas adoeceu. Ficou com febre. A minha mãe teve que cuidar dele, a quem lhe ficou muito grato. Isso trouxe-lhe recordações. A minha mãe fazia lembrar-lhe muito a dele. Johnny dava-se muito bem com a mãe, os dois fumavam que nem chaminés e ficavam à conversa durante horas, acendendo cigarro após cigarro.

Tentou a sorte em Hollywood com Arizona Dream.

Custou-me filmar esse filme. Tive que parar porque sofri tremendos colapsos nervosos. Um foi de três meses. Mas Johnny Depp e Jerry Lewis esperaram por mim. Recusaram outras ofertas que iam recebendo. Velhos tempos em que quando alguém era seu amigo, era verdadeiramente seu amigo. Embora hoje eu também tenha amigos assim, porque estive três anos a filmar On the Milky Road  [risos].

Quando se faz um filme, a equipa vê o sofrimento que envolve o diretor, identificam-se e isso ajuda-os a chegar ao final da rodagem. O que foi interessante sobre Arizona Dream foi o sucesso que teve na Europa, mas não nos Estados Unidos. Fui filmar lá, mas distancio-me da língua deles. Até hoje, acho que não tenho nada para contar lá. Hollywood é uma máquina gigantesca em que não há lugar para o indivíduo. Para fazer um filme, têm que fazer um estudo prévio para analisar todos os gostos das pessoas de forma a reunir tudo e agradar ao maior número possível de pessoas. A minha liberdade de espírito não me permite passar por tudo isso.

De regresso dos Estados Unidos, voltou a triunfar na Europa com Underground, Palma de Ouro em Cannes.

No outro dia, voltei para ver o filme, que é algo que normalmente não faço, e sabem o que reparei? No macaco. O macaco trabalhou bem, mas saiu-nos caro! Mordeu Lazar Ristovski [um dos dois protagonistas] e levámo-lo para o hospital com uma infeção tão grave que teve que ser internado. E o macaco não o mordeu só a ele, mas muitas mais pessoas. Muitos trabalhadores foram para o hospital. Parece que os macacos machos a partir dos trinta e cinco anos podem enlouquecer e têm que ser sacrificados. Em Cannes, estava tudo bem, mas tivemos um incidente e a imprensa agarrou-se a isso. Foi um disparate, houve uma discussão entre as pessoas da equipa, um disparate; depois disso, saíram todos juntos, mas uma revista americana aproveitou a oportunidade para dar mais importância à discussão do que ao nosso prémio.

O tempo dos ciganos e Gato preto, gato branco foram dois filmes que também tiveram um grande sucesso na crítica em toda a Europa, mas às vezes ouvem-se críticas de pessoas dos Balcãs, que se queixam de que os seus filmes mostram sempre as pessoas do sudeste europeu como ciganos.

Sim, é verdade que especialmente os sérvios reclamam muito por serem comparados com os ciganos, e eu não entendo a razão da queixa, uma vez que a cultura cigana não me parece nada reprovável. Os ciganos têm uma espécie de elixir especial, uma receita mágica, contra o fracasso. Aparentemente estão péssimos, mas acabam por nunca se afundar. Isso é bom. E não me refiro a algo puramente musical, vai além das suas bandas e das suas músicas. A verdade é que nunca escondo o cigano que há dentro de mim. Mas, dos dez filmes que fiz, dois são sobre ciganos, não acho que se possa dizer que eu misturo a personalidade das pessoas daqui com a deles.

Estes são estereótipos promovidos pelos ideólogos da Academia de Cinema de Belgrado, que passaram a vida toda a dizer aos alunos que eu não sou diretor e que apresento os sérvios como ciganos. Criaram uma imagem falsa a meu respeito, que saiu da academia para os jornalistas, que a repetiram e assim ficou. O que eu acho é que aqueles que continuam com essa questão fazem-no porque têm ancestrais ciganos e não querem que se saiba ou que se relacionam com eles de alguma forma por causa dos seus complexos.

Em Espanha, algo semelhante acontece com Almodóvar, há pessoas que se queixam de que retrata a sociedade espanhola como se fossem todos homossexuais, viciados em drogas…

Bem, eu adoro Almodóvar e todos os seus filmes. Não vi os dois últimos, mas acho que consegue num espaço muito pequeno, com uma história muito simples, originar grandes reflexões. Já eu preciso que num filme meu, arda uma casa, outra voe… [risos]. Ele consegue tudo isso com algumas relações sexuais. Mas agora estou tão envolvido na minha última filmagem, que não vejo filmes há anos. O último filme que me lembro que me emocionou foi Le Havre, de Aki Kaurismaki, e é de há cinco anos.

Em 2008, gravou um documentário sobre Diego Armando Maradona. Como foi a experiência?

Bem, a primeira reunião foi maravilhosa, mas a segunda muito humilhante. Senti-me como um paparazzi atrás dele. Mas acabou numa grande amizade. Admiramo-nos mutuamente. Ele está muito grato, porque logo após a apresentação do documentário, depois de caminhar comigo no famoso tapete vermelho de Cannes, parece que voltou novamente ao panorama mundial. O filme marcou uma mudança na sua vida, ofereçam-lhe emprego pouco depois. Acabou com os seus vícios e, a partir daí, tornou-se treinador e ganhou muito dinheiro com isso. Vi em programas de televisão que, quando lhe mostram a minha fotografia, ele começa a beijá-la.

Acha que existe uma ligação mediterrânea no cinema, uma conexão que o une, por exemplo, ao espanhol Buñuel e ao italiano Fellini?

Muito, muito mesmo. Sinto-me mais ligado ao cinema mediterrâneo do que ao cinema russo ou a outros filmes do Leste Europeu, embora também me tenham influenciado, claro. De facto, se repararem nas digressões da minha orquestra, a maioria das datas são em cidades do Mediterrâneo.

Por que lhe custou tanto terminar o seu último filme com Monica Bellucci?

Eu passei de cavalo para burro! No sentido figurativo e literal [risos]. Sim, caí de um burro na rodagem, embora não tenha acontecido nada. Isso custou-me, porque usei uma tecnologia que não conheço e também foi a primeira vez que eu filmei com câmaras digitais. É a história de um homem e uma mulher que se apaixonam em tempo de guerra e são perseguidos pelo seu amor proibido. Termina com a morte dela e ele é ordenado monge.

Filmou um documentário sobre José Mujica, o ex-presidente do Uruguai.

É um trabalho que fiz com muito prazer. Acho que é uma pessoa maravilhosa e uma personalidade a nível mundial. Embora haja aqueles que não entendem isso, ele é um lutador pelo seu povo e acredito que tudo o que promove de economias autossuficientes, comunas, etc. é o caminho que todos nós teremos que seguir.

Também publicou livros de histórias e memórias.

Senti a necessidade de embalsamar as lembranças, as minhas imagens do passado. A memória é a única coisa que confirma que somos pessoas no sentido literal da palavra. As memórias são a base da continuidade humana. As minhas são todas de natureza social. Quando comecei a estudar, percebi o valor do meu passado naquele ambiente. Com estes livros, quis mostrar que não sou apenas um simples diretor de cinema, mas antes alguém capaz de transmitir a realidade de diversas maneiras, neste caso, literariamente.

In: Jotdown.es

Publicado por Jelena Arsić

Fotografia: Dragan Karadarevic

Edição fotográfica: Ivana Todorovic

Tradução: Into the Balkans

 

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